segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

O universo em cada um de nós

Ao final da década de 50, David Hubel e Torsten Wiesel descobriram neurônios na área de processamento visual do cérebro com preferência por determinados estímulos. Na área do cérebro onde se inicia o processamento visual a preferência é por estímulos relativamente simples: barras que atravessam o campo visual (Figura 1). Alguns neurônios preferem barras horizontais, outros preferem barras verticais e outros ainda preferem barras com uma determinada angulação intermediária. Em outras áreas de processamento visual a preferência se torna mais complexa e específica. Há neurônios que só respondem a estímulos de determinada cor e, em primatas, existem neurônios que respondem apenas a estimulação visual de faces.

Figura 1. Quando é apresentado o estímulo visual de barras verticais, os neurônios com preferência por esse tipo de estímulo se tornam significativamente mais ativos, enquanto outros neurônios não mudam muito o nível de atividade. Mas se barras horizontais são apresentadas, o inverso ocorre.
Conforme a tecnologia utilizada para registrar a atividade neuronal melhorou, cientistas utilizaram estímulos mais complexos. Técnicas como ressonância magnética funcional, registro simultâneo de vários eletrodos inseridos no cérebro ou as várias técnicas de imageamento óptico da superfície cerebral permitem a análise da atividade de um grande número de neurônios ao mesmo tempo. A combinação dessas técnicas com os estímulos chamados de “cenas naturais” possibilitou grande avanço no entendimento da rede neural envolvida na criação da percepção visual pelo cérebro.
Mas nem só de estímulos vive um neurônio sensorial. Neurônios de quase todas as partes do sistema nervoso disparam potenciais de ação mesmo sem a presença de estímulo externo. Populações de neurônios que disparam juntas fazem com que grandes áreas do cérebro tornem-se ativas espontaneamente. Por algum tempo acreditou-se que essa atividade espontânea não passava de uma aleatoriedade dos neurônios, um ruído incompreensível sem informação relevante sobre a estrutura da rede. Sabe-se hoje que isso está longe de ser verdade.
Muitos fatores podem levar um neurônio a se tornar espontaneamente ativo, e há de fato alguma aleatoriedade envolvida no processo. No entanto, conforme grandes grupos de neurônios se tornam ativos de forma simultânea, ou ao menos correlacionada, os fatores aleatórios pesam menos. Em artigo publicado na revista Nature em 2003, por exemplo, um grupo de pesquisadores demonstrou haver padrões na atividade espontânea do córtex visual que muito se assemelham aos padrões gerados por estímulos visuais (Figura 2). O nível de atividade é mais baixo, mas a estrutura é praticamente a mesma.

Figura 2. As imagens acima são padrões de atividade registrados na superfície do cérebro, na área de processamento visual. Regiões mais escuras representam áreas menos ativas, regiões mais claras são áreas com mais atividade. Quando calcularam o índice de semelhança entre padrões espontâneos e padrões estimulados, os cientistas descobriram que padrões de atividade espontânea se assemelham aos estimulados numa taxa muito mais alta do que a esperada aleatoriamente.

Alguns argumentam que é como se o cérebro estivesse a todo o momento fazendo pequenas simulações dos estímulos que estão por vir. Esta pode ser uma forma de manter o sistema nervoso preparado para responder de forma rápida e precisa quando um estímulo é apresentado. Sabemos que se apresentarmos um mesmo estímulo várias vezes a uma pessoa o sistema nervoso responderá de maneira similar a cada apresentação, mas sempre com uma pequena variação entre as apresentações. Normalmente fazemos uma média da atividade nervosa ao longo de várias apresentações para descartar essas pequenas variações. Alguns cientistas têm buscado a origem dessa variação e, aparentemente, a resposta para o problema está na atividade espontânea cerebral. Cada vez que o estímulo é apresentado o cérebro está em um estado ligeiramente diferente, o que resultará em uma ativação ligeiramente diferente do sistema nervoso.
Há muito tempo que se entende a percepção como uma construção da mente. No universo físico a luz possui comprimento de onda, as moléculas possuem estado de agitação e as forças de interação entre seus átomos geram estruturas variadas. Nossa mente traduz esses parâmetros em cor, temperatura e odor, tudo construído pelo cérebro. O estudo da atividade espontânea nos mostra que o cérebro não aguarda silenciosamente pelos estímulos do mundo externo. Ao contrário, há sempre uma expectativa, uma fraca simulação do universo em andamento. Essa simulação será modulada, reforçada em alguns pontos e inibida em outros, e é desse encontro do mundo externo com o mundo intrínseco à mente que nasce a percepção.
Por: Tiago Siebert Altavini
 ts.altavini@gmail.com

Referências
Fox, M. D., Snyder, A. Z., Vincent, J. L., & Raichle, M. E. (2007). Intrinsic fluctuations within cortical systems account for intertrial variability in human behavior. Neuron56(1), 171–84. doi:10.1016/j.neuron.2007.08.023
He, Y., Wang, J., Wang, L., Chen, Z. J., Yan, C., Yang, H., … Evans, A. C. (2009). Uncovering intrinsic modular organization of spontaneous brain activity in humans. PloS One4(4), e5226. doi:10.1371/journal.pone.0005226
Hubel, D. H., & Wiesel, T. N. (1962). Receptive fields, binocular interaction and functional architecture in the cat’s visual cortex. The Journal of Physiology160(1), 106. Retrieved from http://jp.physoc.org/content/160/1/106.full.pdf
Kenet, T., Bibitchkov, D., Tsodyks, M., Grinvald, A., & Arieli, A. (2003). Spontaneously emerging cortical representations of visual attributes. Nature425(6961), 954–6. doi:10.1038/nature02078.

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